segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O PROFETA E OS FANTOCHES (Um Conto Sobre a Apostasia)



Du Camponelo era um homem humilde,  começou a ler o livro das virtudes e aprendeu a ser um homem sábio. Depois de muito tempo, tornou-se um conselheiro líder. Pessoas  buscavam conselho e orientações,  e Du Camponelo, com sua humildade e sabedoria, não fez da sua função uma profissão. Era homem de ego mortificado, tinha um amor muito grande pelo próximo, e no livro das virtudes fazia sua reflexão diária e empreendia grandes meditações nos conselhos desse livro. Pouco a pouco, ganhou seguidores, pois que os conselhos do livro das virtudes eram verdadeiras joias espirituais, e traziam sabedoria e conforto para corações que careciam de um sentido para viver.
As pessoas que seguiam os ensinamentos do livro das virtudes, eram chamados de virtuosos. Essas pessoas eram pacatas, amorosas e pias. Viviam de modo humilde, sempre amando o próximo e promovendo as virtudes mais sublimes. Eram exemplos de vida.
Quando um virtuoso tinha dificuldades, Du Camponelo convocava outros virtuosos, e conseguia arrecadar somas em  moedas para ajudar de alguma forma, o virtuoso desconsolado. Tudo isso sem qualquer egoísmo, orgulho ou conveniências pessoais. O sacrifício da humildade fazia com que Du Camponelo não usasse sua vocação para benefícios próprios. Era o livro das virtudes que ensinava isso. Não poderia fazer da sua função um meio para angariar fundos  e viver uma vida regalada, enquanto outros virtuosos viviam em dificuldades.
Um dia, numa dessas reuniões de amparo ao próximo, Zé do Coração Frio, um “virtuoso” que escondia grandes somas de defeitos no seu coração, ficou maravilhado como os virtuosos davam somas enormes para ajudar aos outros virtuosos em dificuldades. Ficou assombrado como Du Camponelo, devolvia grandes somas aos seus doadores, quando não havia necessidades maiores. Desde que a vida virtuosa tinha como lema, a simplicidade, o amor ao próximo, a humildade e a vida regida por disciplina de virtudes mais raras, Não seria justo, Du Camponelo reter para benefícios próprios, ofertas que foram doadas para a manutenção do amor.
Zé do Coração Frio ficou pensativo, e não dormiu a noite. Suava para ter seu pão diário, o livro das virtudes ensinava que a dignidade de um pão tinha o preço do suor. Mas a cena que tinha visto incomodava seu pobre coração.
Numa noite, quando o silencio navegava entre as sombras da madrugada, uma luz apareceu diante de Zé do Coração Frio. Uma luz como a lua atrás de nuvens  escuras ou como a alma de todas as tempestades atrás do sol poente.
Uma voz com suave deslize de chuvas torrenciais ecoou diante dele.
- Sou  Nêbulo, um ser espiritual da ultima dimensão, Tu és um escolhido Zé, és um escolhido para anunciar as novas de um mundo distante, mas que existe tão próximo ao teu coração. Serás como ponta de estrela, todos olharão para ti, és escolhido, te dou uma mensagem, o livro das virtudes ganhará novos significados, serás profeta das alturas, pois tu és digno dessa tão grande missão, mais do que qualquer um aqui neste mundo.
Zé Coração Frio tremeu e chorou. Tinha experimentado uma grande revelação. Exaltado estava seu coração. Uma exaltação secreta, um sentimento de felicidade interna, a felicidade do próprio ego.
No final de uma reunião em que Du Camponelo, na sua mansidão fazia exposição tão sabia dos conselhos do livro das virtudes, aos virtuosos de certa comunidade, Zé do Coração Frio se levantou diante da multidão e disse que tinha uma noticia maravilhosa. Recebia uma revelação das alturas, uma espécie de ser supranormal, cujo brilho excedia de muito o sol que se  escondia atrás de todas as mais tenebrosas tempestades tinha-lhe anunciado que ele era um escolhido, um profeta da noite.
O povo prestava atenção aos seus  clamores, e ficaram admirados por tão grande ventura de Zé ser visitado por um ser supranormal , quão admirável  era  essa  alva experiência mística.
Du Camponelo ficou triste com a situação. O povo se inclinava aos clamores de Zé, e pouco a pouco, Zé Coração Frio ganhou a estima e a atenção de muitos virtuosos. Ele então certa feita apregoou sobre o amor nessas palavras.
-Olhem o livro das virtudes, esse livro nos ensina a amar, quanto mais extenso for esse amor, quanto mais amplo for esse sentimento mais nobre, mais correto será a execução de seus conselhos. Digo-vos, que até esta data, éramos limitados a isso, eu vos digo que devemos amar sim, amar mais e mais. Oh o amor precisa ser mais extenso, ame a vocês mesmos, com a maior força possível, amem-se. Sim amem vossas moedas, elas são a causa do beneficio aos irmãos virtuosos. Devemos amar nossas vidas, o verdadeiro sacrifício precisa ser feito por nós mesmos. Aquilo que satisfaz o nosso coração trará a mais plena felicidade, eis o que vos digo. Amem as coisas materiais, pois se não amarem as riquezas, o conforto, como podereis lutar por adquira-las para ajudar os virtuosos desamparados?
O povo ouvia em face de espanto, que mensagem! Poucos rejeitaram tal coisa. A maioria ficou voltada com o coração aberto, a ouvir tão bela mensagem. Zé Coração Frio, acariciou o livro das virtudes, e continuou:
- Sou escolhido. Um ser angélico falou comigo, me chamou de profeta, me disse que novos horizontes espirituais seriam abertos por minhas mensagens inspiradas. Os céus se levantaram a favor de vós...
Du Camponelo levantou sua mão e em voz branda clamou:
- Ouça homem: como tens ousadia de distorcer a virtude do amor promovendo a avareza e o orgulho e a estima exagerada por ti mesmo, se o livro das virtudes condena isso.

Zé do Coração Frio, porém levantou a sua voz e interrompeu aquela nobre admoestação...
- Ouça bom homem, eu sou escolhido, tenho uma missão, sou profeta, mais que tu, estou acima de ti, pois tenho a experiência. A visão é comigo, os seres puros como o pó da tempestade  estão do meu lado. Este livro, o livro das virtudes, está ultrapassado de diversas formas, não o livro em si mesmo, mas seus mensageiros limitaram a mensagem dele. Alem disso, os tradutores e copiadores podem ter danificado a sua mensagem original. Se não fosse assim, das mais densas nebulosas não veriam seres de luz para ajudar-nos nessa emancipação da ignorância. Sou profeta escolhido, o povo precisa me ouvir.
Du Camponelo, retrucou e disse:
-  Precisas  te humilhar. Durante muito tempo me dedico de coração ao clamor de uma mensagem santa sem levar de vossas mãos um único centavo, tenho celebrado a humildade, para que através disso, a interpretação do livro das virtudes saia como a luz do cristal ao meio dia.
Zé do Coração Frio riu, meneou a cabeça e então respondeu
- Desviaste o santo conselho ao limitar a interpretação. Eu tenho a visão, o sonho, a interpretação, a experiência, a profecia, a revelação...
O pobre visionário saiu em excelsa exaltação, e o povo, quase todos o seguiam.  Zé do Coração Frio fez um pequeno palanque, e começou a proclamar a mensagem segundo a sua revelação. Pedia ao povo que dessem  moedas, muitas moedas, pois se dessem para ele, seus lucros, receberiam em dobro, pois se assim amassem a ele, seriam recompensados por  tão nobre obediência.
Então Zé do Coração Frio angariou muito dinheiro, beijava as moedas, pregava o amor mais extenso, amor ao materialismo. Vivia regaladamente, comprava carros e mansões. As experiências místicas continuaram. Nêbulo o visitava temporariamente, quando não, enviava raios místicos que enchiam o coração de Zé Coração Frio, de novas informações sobrenaturais.
Zé do Coração Frio tornou-se um empresário das causa espiritual. Grande conselheiro de gente que precisava de anestesia para as feridas da alma, cada sessão cobrava certa quantia. Suas fotos eram reverenciadas como o ultimo profeta, dizia que saiam virtudes de suas imagens.  Cobrava por cada proclamação de uma nova experiência.
O povo acudia aos montes, e lhes enviava grandes presentes. Zé do Coração Frio,  fez um trono de ouro para si,  encenava as mais estranhas encenações para ganhar a atenção do povo. Suas interpretações do livro das virtudes eram novidades maravilhosas, já não ensinava mais o povo a renunciar as paixões terrenas, mas a experimenta-las como um meio de adquirir a alegria da vida.
Tornou-se um ser central, todos os seus seguidores giravam em torno dele. Suas palavras, gestos e costumes eram imitados. A família de Zé do Coração Frio vivia regaladamente, embora tantos de seus devotos eram miseras almas que viviam nas sombras de grandiosas promessas que nunca se cumpriam. Porem, pelo fato de serem tão pessoais, já era um consolo pois era um grande privilegio ouvir uma mensagem pessoal de tão beato ser místico, como era Zé do Coração Frio.
Ah! Um fio do cabelo de Zé do Coração Frio era o que seus seguidores almejavam. Quando ele sentia esses ébrios desejos do povo, vendia-os como se fossem plumas de asas de querubins.
Já não era mais necessário qualquer tipo de virtudes, o simples fato de tocar no profeta era uma graça arrebatadora, até mesmo o suor da testa do Zé Coração do frio era desejado como um elixir de virtudes ultra-sacras. Um pingo desse suor poderia ser considerado como o próprio fluir Das lagrimas de uma divindade. Por isso, poderia ser vendido a preços exorbitantes.
Os holofotes mais exóticos, os risos mais extravagantes, as danças mais sensuais, tudo isso era supostamente tão mais sublime  do que fazer exposições literárias e intelectuais do livro das virtudes, para depois convocar os ouvintes a praticarem tudo na mais singela sinceridade
Zé do Coração Frio tinha um seguidor, chamado João do Coração Gelado, Este teve uma visão de um anjo extraplanetario, que lhe deu a missão de proclamar as virtudes do amor ao ódio, Coração Frio foi expulso e criou a Sociedade dos corações endurecidos. Outro seguidor de Zé, ouviu o bramido de um anjo azul, que o convocou tal a proclamar os códigos indecifráveis do livro das virtudes. Um outro seguidor, este do João Coração Gelado, foi visitado por um espírito de luz da ultima dimensão do universo, que lhe convocou a ser o supremo profeta dos dias frios, e assim sucessivamente...

Du Camponelo continuou sua missão, as pessoas não tinham muito interesse em ouvi-lo. Sua interpretação do livro das virtudes era uma bela interpretação cujo exemplo de vida por atitudes mais elevadas, contribuía para o valor de suas mensagens. Pregava o que vivia, e vivia o que o livro das virtudes ensinava. Pobre homem solitário! Sua vida era rica em dignidade e amor aos outros. Um verdadeiro homem que sustentava as virtudes cardeais pelo fogo da humildade. Escondia sua honra no cálice de seu sacrifício pela humanidade.
Du Camponelo viveu quase anônimo, em voto de pobreza e amor ao próximo. Foi motivo de risos, por causa de sua maneira tão antiquada de ver a vida. Na simplicidade de encontrar em uma flor do campo, via o motivo para ser feliz, olhar para as estrelas da noite e sentir a brisa do mar, eram experiências de profundidade de discernimento do verdadeiro significado da vida. Quando comia pão com água, sentia a satisfação de se contentar com a humildade simples. Quando comia um pêssego, sentia a doçura da própria criação. Seguia na estrada com os mais simples. Cantando o hino da dignidade de ser humano. DEUS e anjo algum, nunca visitaram Du Camponelo, o Criador apenas aguardava o dia em que o fim da jornada terminasse,  e Du Camponelo entrasse pelos portais do verdadeiro amor, onde a luz da verdade brilha eternamente na face dos homens mais sinceros.


Clavio J. Jacinto



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